30.5.10

transplante cardíaco

aos poucos vou andando pela casa e recolhendo tudo que me pertence; as brincadeiras de infância e as marcas de pé preto e bola no teto, as conversas entranhadas nas paredes junto com todos os segredos que ouviram, as bárbies, o tamagoshi, o lego e o diário, o cheiro de minhas comidas preferidas ainda nas panelas, o barulho do sapato social no corredor, assim como a luz da tv acesa por baixo da porta e os banhos de porta aberta. recolho os presentes dos meus aniversários e todo o seu acúmulo de anos, as velas semi-derretidas guardadas na gaveta junto com as fotografias de quando acenderam pela primeira e última vez. vem com elas o enorme quintal de casa com suas árvores de coça-coça, a primeira curva de bicicleta no chão, os inúmeros passeios de carro nas noites de choro e a manhã de comer areia na praia pela primeira vez. vem com elas as tardes de derrota no boliche, os filmes que mamãe dublava no cinema, a pequena sereia todo dia antes de ir para escola e as canções que papai fazia. vou catando pelos cômodos as primeiras memórias de medo ao acordar sozinha, de cama molhada de xixi, de fraldas e absorventes, do chulé na sapatilha do ballet, da camela elástica da ginástica olímpica, dos treinos de basquete, vôlei, futebol, chuteiras e caneleiras, medalhas e uniformes, fardos e fardas. os livros da escola, os gibis da mônica, a capricho. vou guardando de volta em mim o latido do primeiro cachorro, uma vira-lata chamada totó, o som da primeira palavra em inglês, a verdade sobre papai noel, a otite nos verões de água salgada, o balanço no pé de manga, o esconde-esconde nas escadas do prédio, as pescarias impacientes que terminavam em anzol no dedo, as la ursas no carnaval, a piscina em forma de coração, os tiros de chumbinho no nada, o são joão de fogos e quadrilhas, os selinhos escondidos no verdade ou consequência, as tardes bronzeadas de rede balançando, as cabanas e as fogueiras, os cinco reais de mesada por semana, o pirulito que fazia cócegas na língua, a ansiedade para montar a árvore de natal, a interminável sequência de memórias de uma vida.
vou vestindo em mim as roupas espalhadas pelo chão junto com as lembranças de quando usei-as pela última vez... assimilando tudo numa bagagem emocional e segurando em minhas mãos o insegurável, o conteúdo de tudo que dei e me foi dado, o recheio, o peso de uma vida inteira que escorre para dentro de outra pessoa, que agora terá posse de tudo isso.

o que estou fazendo, basicamente, é arrancando meu coração de casa e entregando-o para você.

5 comentários:

. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
. disse...

minha primeira cadela se chamava totó e era vira-latas, talvez eu fosse mais feliz se tivesse entregue meu coração pra ela, uma das poucas cadelas que o mereceu de verdade.

. disse...

melhor do que mudar de casa é habitar uma só.

maria, só maria. disse...

HAHAHAHAHAHAHAHA, au au


aparentemente eu sou um caracol, carrego minha casa nas costas, ou um trailler, ou sou nômade em mim, mesmo.

julia nl disse...

aii q gostoso! dá p ter um gostinho da sua infancia lendo o q vc escreveu e ver q vc lembra-sentindo de tudo isso..