aos poucos vou andando pela casa e recolhendo tudo que me pertence; as brincadeiras de infância e as marcas de pé preto e bola no teto, as conversas entranhadas nas paredes junto com todos os segredos que ouviram, as bárbies, o tamagoshi, o lego e o diário, o cheiro de minhas comidas preferidas ainda nas panelas, o barulho do sapato social no corredor, assim como a luz da tv acesa por baixo da porta e os banhos de porta aberta. recolho os presentes dos meus aniversários e todo o seu acúmulo de anos, as velas semi-derretidas guardadas na gaveta junto com as fotografias de quando acenderam pela primeira e última vez. vem com elas o enorme quintal de casa com suas árvores de coça-coça, a primeira curva de bicicleta no chão, os inúmeros passeios de carro nas noites de choro e a manhã de comer areia na praia pela primeira vez. vem com elas as tardes de derrota no boliche, os filmes que mamãe dublava no cinema, a pequena sereia todo dia antes de ir para escola e as canções que papai fazia. vou catando pelos cômodos as primeiras memórias de medo ao acordar sozinha, de cama molhada de xixi, de fraldas e absorventes, do chulé na sapatilha do ballet, da camela elástica da ginástica olímpica, dos treinos de basquete, vôlei, futebol, chuteiras e caneleiras, medalhas e uniformes, fardos e fardas. os livros da escola, os gibis da mônica, a capricho. vou guardando de volta em mim o latido do primeiro cachorro, uma vira-lata chamada totó, o som da primeira palavra em inglês, a verdade sobre papai noel, a otite nos verões de água salgada, o balanço no pé de manga, o esconde-esconde nas escadas do prédio, as pescarias impacientes que terminavam em anzol no dedo, as la ursas no carnaval, a piscina em forma de coração, os tiros de chumbinho no nada, o são joão de fogos e quadrilhas, os selinhos escondidos no verdade ou consequência, as tardes bronzeadas de rede balançando, as cabanas e as fogueiras, os cinco reais de mesada por semana, o pirulito que fazia cócegas na língua, a ansiedade para montar a árvore de natal, a interminável sequência de memórias de uma vida.
vou vestindo em mim as roupas espalhadas pelo chão junto com as lembranças de quando usei-as pela última vez... assimilando tudo numa bagagem emocional e segurando em minhas mãos o insegurável, o conteúdo de tudo que dei e me foi dado, o recheio, o peso de uma vida inteira que escorre para dentro de outra pessoa, que agora terá posse de tudo isso.
o que estou fazendo, basicamente, é arrancando meu coração de casa e entregando-o para você.
5 comentários:
minha primeira cadela se chamava totó e era vira-latas, talvez eu fosse mais feliz se tivesse entregue meu coração pra ela, uma das poucas cadelas que o mereceu de verdade.
melhor do que mudar de casa é habitar uma só.
HAHAHAHAHAHAHAHA, au au
aparentemente eu sou um caracol, carrego minha casa nas costas, ou um trailler, ou sou nômade em mim, mesmo.
aii q gostoso! dá p ter um gostinho da sua infancia lendo o q vc escreveu e ver q vc lembra-sentindo de tudo isso..
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