12.3.20

Bia (Morenas)

você nasceu em berço de ouro, desconfortável, cintilante demais com seu brilho improvável à sonolência. ouro pode ser bom em joias e barras opulentas, mas certamente não é o local mais aconchegante para se dormir. no lixeiro do seu quarto, fraldas sujas de coco amarelo, por ironia também ouro, e restos de charuto cohiba. quem fuma num quarto de recém nascido?

não interessa, na verdade várias pessoas já fumaram em aviões e quartis de hospital, eu fumei com você dentro de mim então certamente não podia usar isso como parâmetro para nada. se houve um momento de fato marcante na vida, foi o dia d seu nascimento. mas isso é um longo e extensivo assunto ao qual quase nunca me faltará paciência para te descrever, mas só pra você. e depois de você, o destino me trouxe Bruna. não acredito em teoria dos acontecimentos, que tudo que acontece está fadado a acontecer novamente, sempre em dupla. a vida acontece e acontecerá indubitavelmente e à parte da nossa percepção dela. no meu caso, um par de acontecimentos era pouco; geralmente eles viam de três. mas bem, houve Bruna. e depois a outra Bruna e a terceira Bruna, e ainda tem mais uma que não se chama Bruna mas a essa altura era mais fácil chamá-la de “última Bruna”. Bruna me ensinou o importantíssimo poder de delegar funções! meu deus, de repente eu não precisava saber fazer nada, bastava conhecer alguém que fizesse bem e ter o capital para que a criatura seguisse executando o que eu pedisse! isso era o melhor dela, tinha três filhos muito bem criados através do poder de escolher e capacitar babás incríveis, muitas vezes passando apenas um terço do ano no mesmo continente que as crianças. Bia chegava após um longo dia de feira, SPA, folders, reunião de condomínio, terapia do caçula, tudo com o cabelo loiro liso preso em um rabinho, ah quando ela chegava, esse era o o grande marco: quando puxava seu rabo de cavalo soltando as suas mexas hidratadas, as maçãs do rosto levemente acariciadas por algum pincel de maquiagem, num movimento simples, arqueava seus cotovelos para atrás, livrava as amarras e começava a mandar com maestria. ela sabia que era boa nisso pq se via no seu olhar, aquele momento exato onde ela simbolicamente livrava seus cabelos e as amarras do dia, subia o olhar em um tom e delegava. Bia disparava ordens com disciplina, severidade e uma carinha de menina que diluía toda austeridade das palavras anteriores. apesar ou talvez até por conta de tantos copos e bebidas, me encontrava sempre procurando a barra da saia de Bia com dois olhos pidões, quase suplicantes “por favor, me deixa te ajudar com alguma coisa?” e ali mesmo ela já disparava a próxima ordem. Ela me introduziu ao mundo estético das plantas, a parte “medicinal” eu já manjava muito bem. ela molhava os lábios antes de falar o nome de cada planta que conhecia, e eram muitas, seus lábios estavam
sempre ressecados daquela saliva salgada em contato constante com as mucosas. 

porra Bia, eu demorei para entender que nossas desavencas jamais seriam tratadas num campo de batalha, assim como nossos desejos eram camuflados, ou pelo menos essa era a minha visão, transformar tudo que pudesse ser uma demonstração de afeto para você em um algo banal, simples, quase dispensável. ou se não, te daria as minha melhores obras de arte. era tudo ou nada e eu ainda não havia compreendido o alcance do meu “tudo”, mas certamente já passara os piores anos do “nada”. 

meu curriculum vitae era quase uma sequência de desastres pessoais que precisaram ser notificados através do que se chama “trajetória educacional e experiências profissionais”. tentativa de suicido no início da faculdade de medicina, relacionamentos extraconjugais com médicos e professores, internamento em clínicas de desentoxicacao, novas intoxicações, abortos, diplomas, 

Nenhum comentário: