27.10.20

tanto

 

comprometer-se ao amor é comparecer aos cem funerais da pessoa que amamos 

daquela que não se é mais

da quem se está muito cansado para ser

da que jamais vestiu a roupa que você criou sobre o que ela seria

recolher a pele derramada e alimentar os ossos

para que cresça o encontro de quem está perdido com quem tão desesperadamente gostaríamos que encontrasse

por um instante, a faísca mostra um olho 

e damos graças ao escuro por acolher o medo de quem ainda não encontrou sua forma definitiva, 

aceitando o próximo instante e sua transfiguração 


(estourar uma espinha no espelho, limpar a mão na barra da camiseta e retornar para cama,

cochichando ao travesseiro que amanhã se acordará mais uma possibilidade)


e também, sobre falar dentro da cabeça com tons baixos, falar manso para o golpe

escutar a ponta da faca 

reler a cicatriz em outra língua, olhar a pele como quem lê um poema 

um poema que viaja costurando cada instante em uma história 





16.6.20

everywhere i look i see failures

toque duas vezes para indicar que você curtiu


arrastar o dedo para cima indica que você foi indiferente


(outra foto)


are you self-conscious about your procrastination?


constrangido e desconfortável


(agora tudo parece pessoal, mas sua existência mal é percebida - exceto por você mesmo.)


the things you don’t know still exist


(the drugs are working)


ignorance is a mistake you make by not doing anything.


perversamente dócil ~

3.6.20

aldeia

de que adianta me colocar em palavras?
na minha cabeça elas não formam ponte,
esticam os dedos na direção de quem grita, o arco dos braços
(são como tentáculos sem um corpo)
incham, encharcados de tentativas, uma turgidez palpitante do pescoço esguio;
são engilhadas, ensopadas, embebidas, afundadas, atoladas, banhadas, molhadas, infundidas,
(para ser dito em uma só respiração)
existem tanto e tão nada são,
de tão insignificantes passam despercebidas,
sem perceber o disfarce mortal da ignorância
morrem pelos olhos
que se voltam
apenas para o chão que desaba.

sou uma mulher que não
eu não quero ter que me convencer de que
sou a mulher salva pelos livros das coisas que eu nunca escrevi
a mulher resgatada pelos olhares de fotografias que nunca imaginei
a mulher vestida por pele apropriada
a mulher camuflada pelas palavras, oportunidades perdidas de um silêncio mais sábio
de um silêncio menos complacente
menos morto:
o silêncio altruísta de quem permite a palavra à mão que deseja segurar
com interrupção de algo ao menos
corajoso.

eu sou a mulher
sentada na ponta da prata do fio da navalha
a pegada embaixo da onda
feito um sonho disperso pelo barulho do assentar de paralelepípedos
em estradas que vejo, sem rumo.

eu sou a mulher que sim
que revisa a palavra antes de atingir as  margens de qualquer ouvido,
carregada com vinte e nove granadas aliadas ao hálito do que foi dito,
sem pena
e às torrentes de frases que seguram o pino que nunca sequer desenvolveram
dentre as outras tantas
tantas
que não contive.

(o desejo furtivo de invadir o inabitável
a fragilidade das lâmpadas carregadas no convés)

eu sou
eu sou a mulher de vidro
e eu sou o vidro no útero da mulher.

12.3.20

talvez repetido

chase rabbits, shoot the birds, save you some for her, white lies on wolf skin, closet monsters on the sink, colored tears & gray skies, faded dreams and brown eyes, girassois e velveteen, lumière des bougies, cartoon music for superheroes and maybe some for me também. amém.

diário de sobriedade

querida sobriedade, 

costumava dizer que meus demônios me atormentavam, como pensamentos obsessivos ou impulsos destrutivos de surgiam como furacões caribenhos, repentinos e devastadores. porém descobri que demônios são entidades ligadas à igreja cristã, talvez de onde venha em parte também a culpa que carrego. o que quero dizer não é que a igreja cristã seja responsável pelos meus delírios de raiva, minhas dissociações entorpecidas, não. mas não atribuo mais minhas angustias a “demônios”. somos todos, sem excessão, luz e escuridão. não existe em um único ser racional a capacidade de ser apenas o absoluto binário católico de “bem” e “mal”. meus medos continuam aparecendo em plena luz do dia, mais uma vez o famoso termo dado à hora mais terrível da depressão: “o demônio do meio dia”. o que carrego são experiencias marcantes, fruto de minhas próprias decisões ou de mal-encontros acidentais com outros indivíduos talvez tão desesperados como eu. ninguém, em sua boa capacidade biopsicossocial, machuca porque quer; machucamos pois fomos machucados e assim aprendemos a nos defender, muitas vezes sem nem saber de onde esperar o ataque.

yo no hablo con palabras

la noche empieza con gustos sublinguales
empieza leja y precisa, como semicirculos papardeando en el radar
moviendose acerca para emboscar todo lo que és impossible y influir en possible
esta noche; hoy, somos objetivo de una historia que se acerca y se desarrola
and though we are moving targets, we are still allowed to move, and to dream, and to forget once the siege closes in.

slow burn

stretch marks in my soul, the heart holds no stones
my pupils dilate imagining smiles yet to come
there is still dirt under my fingernails, id rather thank all the strength of my hands

ilusão - val

coqueiros milimetricamente enfileirados, são assim desde que me lembro de uma janela de carro passeando ao largo da praia, num jogo de agora-vejo-agora-não, o mundo passa na velocidade do seu acelerador, eu encolhida no calor do seu banco de couro e lá no horizonte um azul acolhedor que parece dominar todo o fundo dos olhos. a terra virou o céu? é normal me sentir tão feliz ao ponto de querer criar uma entidade divina à qual possa agradecer por isso? 
olho para o outro lado e vejo você rodando o volante, o reflexo que eu daria ao rosto da divindade que me agracia. 
“obrigada”, repito só para mim. 
depois repenso, “mas nada me faz sentir-me obrigada, pelo contrário, é tudo voluntário, foi tudo voluntário; você dentro de mim, você fora de mim, você em cima de mim, você do meu lado, você querendo ser eu, você preenchendo o lugar vazio do outro que há muito tempo estava vazio por medo.”
então eu rio aliviada. não como eu ria, não aquele riso de quem sabe de que tudo não passará de uma estrela irrompendo em supernova, não. é um riso sereno, com gosto encorpadodo e digno, o gosto do primeiro gole de uma longa, leve embriaguez.


04.12.19

bons momentos não unem ninguém, as pessoas se encontram, celebram e vão embora, o que une mesmo é uma tragédia, 

eu quis entender o amor, então eu amei, depois quis entender o homem, então fui homem, quis entender o estrago, então fui desastre, quis entender o papiro, então fui branca quiném folha, e quando eu não conseguia mais entender, as vezes me doía os músculos franzidos do rosto, aí então eu escrevia. 


você tinha medo que eu tirasse o que você possuía, e eu possuía o medo de que você me entrasse. 

não existe a ong defensora das baratas, elas não tem sindicato. talvez somente os séculos acumulados de evolução. sobrevivência. experiência que vinga ou some. 

Nadie não é um nome,

é ninguém.

Bia (Morenas)

você nasceu em berço de ouro, desconfortável, cintilante demais com seu brilho improvável à sonolência. ouro pode ser bom em joias e barras opulentas, mas certamente não é o local mais aconchegante para se dormir. no lixeiro do seu quarto, fraldas sujas de coco amarelo, por ironia também ouro, e restos de charuto cohiba. quem fuma num quarto de recém nascido?

não interessa, na verdade várias pessoas já fumaram em aviões e quartis de hospital, eu fumei com você dentro de mim então certamente não podia usar isso como parâmetro para nada. se houve um momento de fato marcante na vida, foi o dia d seu nascimento. mas isso é um longo e extensivo assunto ao qual quase nunca me faltará paciência para te descrever, mas só pra você. e depois de você, o destino me trouxe Bruna. não acredito em teoria dos acontecimentos, que tudo que acontece está fadado a acontecer novamente, sempre em dupla. a vida acontece e acontecerá indubitavelmente e à parte da nossa percepção dela. no meu caso, um par de acontecimentos era pouco; geralmente eles viam de três. mas bem, houve Bruna. e depois a outra Bruna e a terceira Bruna, e ainda tem mais uma que não se chama Bruna mas a essa altura era mais fácil chamá-la de “última Bruna”. Bruna me ensinou o importantíssimo poder de delegar funções! meu deus, de repente eu não precisava saber fazer nada, bastava conhecer alguém que fizesse bem e ter o capital para que a criatura seguisse executando o que eu pedisse! isso era o melhor dela, tinha três filhos muito bem criados através do poder de escolher e capacitar babás incríveis, muitas vezes passando apenas um terço do ano no mesmo continente que as crianças. Bia chegava após um longo dia de feira, SPA, folders, reunião de condomínio, terapia do caçula, tudo com o cabelo loiro liso preso em um rabinho, ah quando ela chegava, esse era o o grande marco: quando puxava seu rabo de cavalo soltando as suas mexas hidratadas, as maçãs do rosto levemente acariciadas por algum pincel de maquiagem, num movimento simples, arqueava seus cotovelos para atrás, livrava as amarras e começava a mandar com maestria. ela sabia que era boa nisso pq se via no seu olhar, aquele momento exato onde ela simbolicamente livrava seus cabelos e as amarras do dia, subia o olhar em um tom e delegava. Bia disparava ordens com disciplina, severidade e uma carinha de menina que diluía toda austeridade das palavras anteriores. apesar ou talvez até por conta de tantos copos e bebidas, me encontrava sempre procurando a barra da saia de Bia com dois olhos pidões, quase suplicantes “por favor, me deixa te ajudar com alguma coisa?” e ali mesmo ela já disparava a próxima ordem. Ela me introduziu ao mundo estético das plantas, a parte “medicinal” eu já manjava muito bem. ela molhava os lábios antes de falar o nome de cada planta que conhecia, e eram muitas, seus lábios estavam
sempre ressecados daquela saliva salgada em contato constante com as mucosas. 

porra Bia, eu demorei para entender que nossas desavencas jamais seriam tratadas num campo de batalha, assim como nossos desejos eram camuflados, ou pelo menos essa era a minha visão, transformar tudo que pudesse ser uma demonstração de afeto para você em um algo banal, simples, quase dispensável. ou se não, te daria as minha melhores obras de arte. era tudo ou nada e eu ainda não havia compreendido o alcance do meu “tudo”, mas certamente já passara os piores anos do “nada”. 

meu curriculum vitae era quase uma sequência de desastres pessoais que precisaram ser notificados através do que se chama “trajetória educacional e experiências profissionais”. tentativa de suicido no início da faculdade de medicina, relacionamentos extraconjugais com médicos e professores, internamento em clínicas de desentoxicacao, novas intoxicações, abortos, diplomas, 

28.1.20

engrenagens exaustas

engrenagens exaustas dos mesmos ciclos que não enganam a mais ninguém, apenas giram, hipnotizam o meu eu de seda e o meu outro eu, o sedado,
geram calor que queima sem nunca aquecer,
geram tensão nos pontos de contato que jamais se contactuam,
faíscas nos distraem de queimadas,
há uma densa estática em tudo que vejo, na rádio que ouço e principalmente nas entrelinhas dos gestos enfáticos daquele que dá o sermão motivador.

27.1.20

é um padrão que se repete; os homens entram nas mulheres e depois os homens saem das mulheres, mas as mulheres-receptáculos nem sempre já são mulheres, assim como os homens que saem, no fim do ato, muitas vezes não passam de bestas, bestas que estiveram dentro de alguma outra mulher por muito mais tempo, dentro da mulher-casa, da mulher-relicário que os gerou quando outro homen resolveu entrar dentro delas.

é isso que me dói, até o mais desprezível dos homens já habitou a casa que violam.

sangue errado

The grey sounds,  the waves my body would make frantically trying to knock down a bat that, later on, I would discover not to be blind at all. Nor nefarious. They are actually more altruistic than most people I know, regurgitating blood for the little ones which didn't get to feed. All the wasted time lingering in ignorance, shedding the wrong blood.