29.4.14

vazio no peito

foi no dia dezesseis do quinto mês que ela percebeu o botão da blusa faltando. não era nada demais, um botão a menos numa roupa, mas ainda assim inquietou-se. sabia do passarinho no peito e logo tratou de costurar um novo no lugar, fechando com linha vermelha aquela fresta de liberdade. passou a mão nos braços, deslizando pelo torso, até a cabeça; so para ter certeza que ainda estava tudo ali, estático. vestiu a blusa ao avesso, de forma que a costura mal feita ficou virada para dentro, encarando o centro do seu tórax, quase como um desafio misterioso ao que dentro estava. permaneceu estática diante do espelho cercado de fotos que um dia grudara ali, na esperança de ver algo mais nos reflexos diários. levantando os braços sob a testa, fixou os olhos naquele fio vermelho e aguardou, até que viu o emaranhado crescer, crescer, enrolar-se em si mesmo, tramando um ninho. sentiu a linha liquefazer-se, sentiu um molhado quente e uma dor fina, quase bonita; então na batida seguinte, a bicada. e outra. e outra. seguida de outras tantas, até enxergar no cerne daquele caos, um bico dourado, despontando para fora de si, com toda coragem pra nascer. a princípio, caiu no chão estatelado. não piou, não cantou, não esboçou a menor intenção de voo. era um inútil pássaro que não voava. passou a mão decepcionada no meio do buraco que agora se instalara em seu corpo, e pela primeira vez sorriu; podia enxergar o vazio que sentira ali durante todo aquele tempo. apanhou do chão aquela ave frustrada, guardando-a no bolso junto com as chaves de casa e o celular. trocou de roupa e saiu pela porta de trás com um sorriso entalado nos dentes: agora era so questão de tempo novamente.

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