6.4.10

plantão neonatal

a sensação de tocar numa vida pela primeira vez.
de repente ela escorrega de lá e cai nas suas mãos sujas de sangue. um caos de vida, cheia de vida virgem, e contra todas as expectativas, invés de você suja-la, ela te purifica.
a vida dela abençoa a sua.
assim, de repente, ela chega com toda confusão e você a segura para que ela não caia, você dá as boas vindas com um sorriso tranquilo, e na maior da ironias, é ela quem te conforta, com todo o seu barulho.
você se comove com o sentir daquela coisa viva se mexendo nas suas mãos, ela te sente antes mesmo de saber o que é sentir.
você segura aquela criatura pura antes que ela saiba de si, antes que ela aprenda a andar e se perca, antes que ela comece a pensar e não tenha mais paz, bem antes que o mundo a engula de volta para ele.
você ouve o primeiro choro, sente o coração bater pela primeira vez, aquece-a com as próprias mãos até que ela pare de chorar.
você faz o trabalho de deus na terra e depois volta para sua posição de humano;
vai deixa-la ir, porque faz parte, ela não é sua.
você teve direito ao sagrado momento da sua estreia de vida, mas isso não faz dela sua. ela vai para outros braços também, vai mamar e aprender a viver sem a sua ajuda, é o melhor que você pode fazer por ela, cuidar e deixar que ela se cuide.
vai ama-la de longe, por trás dos vidros, através das fotos, aquela vida que você apenas trouxe ao mundo, aquela vida que trouxe o mundo de volta para você. vai ama-la assim mesmo, ciente de que ela não é sua.
ela não é nem ela ainda, muito menos sua. mas você fica olhando para ela mesmo sabendo disso, mesmo sabendo que ela não tem idade para ser nada ainda, que ela é livre.
e o que sabe ela sobre liberdade?
nada, por enquanto.

mas um dia saberá, e talvez aí ela seja livre para ser sua.

2 comentários:

Gabriela Baldasso disse...

não queria sujar a beleza rara do texto, lindo mesmo mas me lembrei da aula de procedimentos e não pude deixar de lembrar de : pobres daqueles que nascem meconizados, já nascem na merda

maria, só maria. disse...

é tudo uma grande metáfora, em momento algum pensei num bebê hahahahaha

e os meconizados são bem vindos tb, em minha metáfora