17.7.14

a lembrança lembrada é uma outra vida na cabeça

- eu queria escrever um livro
- livro de que?
- não sei, não tenho nada específico em mente pra contar, é mais coisa de peito mesmo 
- conta da tua vida, tem umas coisas né 
- a minha vida mesmo não tem tanta graça, o bom são as pessoas que acontecem, são os cheiros que ficam, queria tipo, escrever uma foto de alguns momentos
- porra, eu acho válido, senta um dia e vai lembrando, anota tudo que vier na cabeça
- não, eu já tentei, não consigo, ou melhor, não aguento, não é como se eu sentasse ali com uma caneta na mão e fosse listando os acontecimentos numa folha de papel, tem toda uma revivência, você lembra de uma viagem pra Cracóvia, um dia frio pra cacete, uns 0oC pelo menos, dai vcs encontram um restaurante lindo com uma enorme Hamsa na frente, e era aniversário dela sabe? ela é judia, não sei se te falei, mas enfim, você lembra disso e de repente a memória começa a te viver também, com saudade, e aí você já não sabe mais dizer ao certo se o almoço foi bom ou ruim, ou se de fato tal coisa aconteceu ou foi coisa de um livro que vc leu na semana passada, velho você não lembra nem se de fato gostou, só sabe que ali naquela saudade tudo parecia melhor, ou pior, não da pra dizer com razão, pq na lembrança tudo vem mais bonito e triste, os papéis se invertem e você se pega sendo a própria folha branca, grava na carne do peito essa versão B da realidade, e a realidade vira uma história completamente desconhecida, que ninguém nunca saberá, e assim eu não estaria escrevendo um livro sobre minha vida, mas sim sobre outra coisa...
- então po, escreve sobre essa outra coisa, escreve sobre o teu jeito de ver o que já aconteceu, ou sei lá, para de ficar querendo lembrar demais e simplesmente inventa uma história
- quando eu conto a minha, de certa forma já estou inventando, não?  
- não, você apenas está vendo um acontecimento com outros olhos, mas se aconteceu, aconteceu
- não confio no que me acontece, e então? 

Nenhum comentário: