24.7.14

a tríade das coisas

"I used to think that if I dug deep enough to discover something sad and ugly, I’d know it was something true."

sim, eu também, costumava pensar que cavar seria a eterna iminência de encontrar, e que o encontrado seria sempre algo triste, feio e cru, talvez como eu achasse que deveriam ser todas as coisas por dentro, o cerne de toda coisa viva; triste, feio e cru. triste porque a vida em si, em todas as suas formas, seria a tristeza ou a tentativa oposta da tristeza; feio porque nenhum olho jamais batia ali, logo não havia motivo para ser bonito, não havia em si a pressão da vaidade nem a ideia de beleza, era um simples (simples?) sentimento feio que andava escondido um pouco abaixo dos outros; cru porque o sol jamais alcançava essas profundezas, tampouco o calor humano, nem nada que não fosse triste ou feio ou cru também, e assim eu ia procurando qualquer coisa branca que possuísse as três características da coisa achada, as três marcas premonitórias que não passavam de uma desculpa, e as desculpas não existem, existe apenas o estrago que elas encobrem, ou tentam, mas enfim, seguia procurando a tríade da coisa, e sempre que por acaso vinha de esbarrar em uma, dizia "olha aí, veja como esta certa em procurar, você está achando as coisas tristes, feias e cruas porque elas de fato existem" e as vezes via umas coisas que não eram necessariamente tristes, nem feias ou quase nada cruas, mas forçava a barra, fazia vista grossa e dizia "achei mais uma!" porque era necessário que as coisas fossem encontradas para serem destruídas, talvez como um quinioterapico destruindo as células e as células que parecem com as células, na dúvida né, melhor sacrificar as boas também, para que não sobre mais nada de triste, feio ou cru. 
eis que um dia, já vinha fazendo isso no automático, já acordava com uma parte ativa de mim caçando, até mesmo nos sonhos começaram a desaparecer as coisas, as coisas marcadas por umas das três características, e começou a despontar um rosto no lugar onde havia morto uma coisa. então eis que um dia o jogo mudou, as regras mudaram no momento exato em que olhei o teu rosto pela quinta vez nascendo de uma coisa morta, e o alvo virou você, um pouco depois de ter percebido que o teu alvo tinha virado a mim, e então eu caçava as coisas tristes e feias e cruas e em seguida esperava um pouco mais, com olhar de morto, e assim que brotava o primeiro nariz ou a primeira intenção de um olho, apertava meus três dedos, indicador-triste, médio-feio e polegar-cru, espremendo a infrutífera tentativa como se ainda fosse a coisa, mas não era, não era mais crua pelo menos, causando uma pequena hemorragia doce, de sangue sabidamente meu, no princípio pouco, alguma horas mais tarde ainda pouco, porém sempre contínuas, aquelas pequenas hemorragias, cresciam na medida que te destruía, e logo destruíam a mim na sequência, um vazar de dias, dias e mais dias, quando comecei a pisar em poças internas de sangue próprio, e seu rosto estampava tudo por dentro, essa coisa que não era triste, nem feia e muito menos crua, como era vivo teu rosto, de vida minha parasitada? de vida tua independente de mim?, e qual doía mais, eu não sei, eu não sei se era saber que meu pouco que sobrava agora servia para te alimentar também, e que o simples fato de existir a mim carregava no colo a tua existência também, mamando em meu próprio seio, ou - não foi decisão fácil - ou se doía mais te ver ali por acaso, por simples ironia das vontades, independente, vivendo em mim apesar de tudo, inclusive de mim mesma, sem qualquer vínculo ou desejo próprio ou necessidade, essa palavra doi, já não havia mais a necessidade. o sangue agora chegava aos meus joelhos, meus dedos do pé inchados, vermelhos, encharcados por dentro, por fora pareciam pés, pés marcados por outros pés, coisa que passa, enquanto por dentro eu sabia o tamanho da coisa que os atingia. no dia em que a marca vermelha atingiu meu sexo, e eu sangrei loucamente como uma mulher em parto, era tanto sangue meus deus, tanto do meu sangue ralo vindo a tona assim, com os coágulos da vida, derramando no chão por coisa inútil, não haveria de nascer nada ali, se não a minha morte, ou o aborto da vida, e aí deu-se que: esqueci das coisas tristes, feias e cruas, talvez num ultimo impulso de vida, ou talvez já no delírio da morte, comecei a caçar dentro das poças de sangue não necessariamente à você, o fruto indesejado das coisas, tampouco às coisas que pareciam com você, ou que pareciam a você comigo, não, por mais segura que fosse a imaginação da tua presença, era chegada a hora de olhar ainda mais abaixo, de descer um andar naqueles degraus submersos de medo, de sangue vermelho não tão vivo, foi então que enfiei o indicador-triste bem no meio de um dos teus olhos e empurrei, empurrei pelo teu pequeno crânio que eu amara um dia, perfurei tua calota e encontrei do outro lado mais de mim, como se não fosse o suficiente atravessar o inverno que foi você, como se eu estivesse pro trás disso tudo, esse tempo todo e agora chegara ao meu ponto de carne própria onde você havia plantado esse frio que eu segurei, e continuei empurrando, até que - nada, ou melhor, o cessar de tudo que vinha antes, ou melhor, uma luz dourada que podia ser tantas coisas, inclusive nada, e entres todas as coisas e nada, descobri que era eu. quem diria que ali, embaixo de tanto coisa triste, feia e crua, embaixo de tantas tentativas de te destruir, estaria a mim mesma, intacta, dourada, tudo porque me satisfiz em chamar o desconhecido de feio, me acomodei em se-lo triste e cru, porque não fui mais além dos teus rostos nascendo em feridas, porque algum dia havia lido numa revista que as coisas verdadeiras são sempre feias e tristes, e por ser fatalmente tarde, a verdade vinha a tona agora, como um raio de luz livre em meio a sangue, ou uma epifania, ou talvez um último delírio antes de nascer pra lá, mais abaixo.

Nenhum comentário: