14.7.14

as paredes

algo aconteceu desde que você partiu, não sei como dizer isso sem soar louca, mas as paredes foram embora também, te juro, simplesmente deram as costas sem mais nem menos, deixando-me a sós com a carcaça morta da casa. sinto como se agora elas, as próprias paredes, se recusassem a participar dessa formação bizarra de um ex-lar, ainda que estejam da mesma forma de sempre, brancas, estáticas, alertas, só que agora parecem ter vista para o lado de fora, descobriram o mundo também, ficam cercando tudo aqui dentro com um ar de desinteresse que deixaria qualquer um a vontade para gritar a plenos pulmões; já não escutam mais. mas eu não, eu não tenho pra onde ir mesmo que elas não estejam, ou estejam assim, já não faz tanta diferença, se bem que até faz sabe? eu gostava do jeito que pareciam me ouvir, gostava de pensar que elas haviam chegado cada uma de um lugar diferente e dado as mãos naquele molde, optando por permanecer ali comigo, assistir minha vida enquanto eu me deliciava num livro, tomava um banho, fazia amor, eram a minha redoma viva. e como pareciam se importar, será? sentia que curvavam-se as vezes, poucos centímetros, para alisar minha cabeça (ou era eu quem me roçava de carência?), ou aproximavam-se num corredor já estreito de forma que uma bolsa enganchava na maçaneta da porta, não sei, não sei, sei que agora me parecem muito mais paradas, pesadamente implantadas ali num castigo eterno, querendo divórcio do chão, das janelas, do pé direito, queriam se desarmar cada uma por si só e procurar outro lugar, mas não podem, restam ali cementadas sem propósito, a não ser o de erguer o teto sob minha cabeça e abafar, abafar e abafar o que já se enclausurou em mim. talvez como vingança por ter sido a que ficou, talvez não também. a verdade é que a única porta desse lugar não se abriu desde o dia da despedida, e isso talvez as tenha confundido, talvez imaginem que também ficaram para trás, presas, talvez sejam claustrofobicas, ou simplesmente cansaram, ou nunca quiseram estar ali, em primeiro lugar. mas o que posso fazer? manda-las embora? já mandei, já mandei, ante-ontem terminei a garrafa de vinho que decantava na geladeira e pus-me a gritar "vão, podem ir suas vagabundas, tão fazendo o que aí ainda?", soltei a mão na primeira que vi pela frente, uma das tímidas que sempre ficara recuada atrás do sofá bege, acertei em cheio, e ela me derrubou sem nem um barulho, exceto por um gemido derrotado e inofensivo vindo da parte mais assustada de mim. tinha os olhos vermelhos, a garganta vermelha, a dobra dos dedos vermelha e os lábios arroxeados, pus-me a beija-la arrependida, pedi que ficassem, jurei janelas, quadros, mudaríamos a decoração, seria tudo do nosso jeito, mas já era tarde, não ouviam, não estavam mais, já haviam partido, não sei ainda como, tampouco o motivo exato, mas era certo que estava ali sozinha, e agora escrevo pra ti daqui de dentro, sob a pele fria das paredes mortas, onde nada respira, nem entra, nem sai, do meio do esqueleto dessa casa, ou seria um fantasma?, ou um delírio?, ou seria eu?

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